Wakashū: juventude, gênero e estética no Japão pré-moderno

Descubra quem eram os Wakashū, jovens do Japão pré-moderno que ocupavam um papel único entre infância e vida adulta, uma espécie de terceiro gênero.
Muito antes das discussões contemporâneas sobre identidade de gênero e expressão individual, o Japão já possuía uma compreensão própria — e surpreendentemente fluida — da juventude e do corpo.
No centro dessa visão estavam os Wakashū (若衆), jovens do sexo masculino que ocupavam um papel social, estético e simbólico único no Japão pré-moderno, especialmente durante os períodos Muromachi, Sengoku e Edo.
Mais do que uma simples fase da vida, ser wakashū significava habitar um estado intermediário entre infância e maturidade, com regras, aparência e expectativas próprias.
O que significa Wakashū?
A palavra wakashū (若衆) pode ser traduzida literalmente como “jovem pessoa” ou “jovem rapaz”. No contexto histórico japonês, ela se referia a meninos e adolescentes — geralmente entre a infância tardia e o início da idade adulta — antes do ritual de maioridade.
O wakashū não era considerado nem criança nem adulto. Ele existia em um terceiro estado social, com identidade visual, comportamental e até sexual distinta.
A marca visual: o penteado Wakashū
Um dos aspectos mais importantes para identificar um wakashū era o penteado. Eles usavam o cabelo com:
● a parte frontal raspada parcialmente
● o topo e a parte de trás longos
● um estilo que os diferenciava claramente de crianças e adultos
Esse penteado funcionava como um marcador social visível, indicando que o jovem ainda não havia passado pelo genpuku — o ritual de entrada na vida adulta.
Quando o wakashū cortava esse cabelo, simbolicamente deixava de existir como wakashū.
Estética e beleza: ícones culturais
Durante o período Edo (1603–1868), os wakashū tornaram-se verdadeiros ícones estéticos, especialmente no mundo urbano. Eles eram frequentemente retratados em:
● gravuras ukiyo-e
● literatura popular
● teatro kabuki
● poesia
Sua aparência combinava traços considerados hoje como androgênicos: juventude, delicadeza, roupas refinadas e gestos elegantes. Essa estética não era vista como ambígua ou problemática — pelo contrário, era celebrada.
Wakashū no teatro kabuki
No kabuki inicial, muitos atores eram wakashū. Eles interpretavam tanto papéis masculinos quanto femininos, e sua presença no palco atraía enorme atenção.
Com o tempo, o governo Tokugawa passou a regular fortemente o kabuki, justamente porque os wakashū se tornaram figuras de grande fascínio social, levantando preocupações morais e políticas.
Ainda assim, sua influência moldou profundamente a estética teatral japonesa.
Sexualidade e relações no Japão pré-moderno
Um dos temas mais discutidos sobre os wakashū é sua relação com a sexualidade. No Japão pré-moderno, especialmente entre a classe samurai, era comum a prática do wakashudō (若衆道) — “o caminho do wakashū”.
Essa relação não era casual nem marginal, mas institucionalizada, com regras, expectativas e limites claros. Esse sistema de relações envolvia:
● um samurai adulto (nenja ou nenja-shu)
● um jovem wakashū (aprendiz, ainda não iniciado na vida adulta)
● laços de lealdade, educação e, em alguns casos, intimidade
Essas relações não eram vistas como desviantes, mas como parte estruturada da sociedade, com códigos éticos próprios. Para a classe samurai, o wakashudō tinha funções práticas e simbólicas:
Formação moral e marcial
O wakashū era treinado por um samurai mais velho em:
● artes marciais
● etiqueta
● estratégia
● autocontrole
● lealdade
A relação funcionava como uma mentoria intensa, semelhante a um mestre e discípulo.
Lealdade absoluta
A ligação entre o samurai adulto e o wakashū era vista como:
● mais forte que amizades comuns
● mais confiável que alianças políticas
Acreditava-se que esse vínculo criava lealdade inabalável, essencial para a vida guerreira.
Disciplina do desejo
Diferente da visão ocidental moderna, o wakashudō era visto como uma forma de:
● canalizar desejo
● impor regras ao comportamento íntimo
● evitar relações consideradas caóticas ou socialmente perigosas
Muitos textos samurais condenavam relações superficiais ou promíscuas, reforçando o caráter moral e disciplinado da prática.
Então quer dizer que a relação entre samurai e wakashu era sexual?
Em alguns casos, sim, mas isso não era o aspecto central.
Para os samurais:
● o vínculo emocional e ético era mais importante
● a intimidade não definia identidade sexual
● não existia a ideia moderna de “orientação sexual”
O samurai podia ter esposa, filhos e ainda assim manter uma relação wakashudō no período apropriado.
O vínculo de lealdade entre um samurai e um wakashu era para a vida inteira mas qualquer intimidade física era proibida após o wakashū atingir a idade adulta (genpuku).
Identidade de gênero: uma leitura contemporânea

Embora não seja correto aplicar conceitos modernos diretamente ao passado, muitos estudiosos veem os wakashū como exemplo de que o Japão histórico possuía uma visão menos rígida sobre gênero e identidade.
O wakashū não era infantil e não era totalmente masculino no sentido adulto.
Ele era livre para expressar delicadeza, beleza e sensualidade sem estigma.
Essa fluidez desapareceu gradualmente com a modernização do Japão no século XIX e a adoção de valores ocidentais mais binários.
O fim do Wakashūdo como categoria social
Com o avanço do período Meiji (a partir de 1868), o Japão passou por profundas transformações sociais. O conceito de wakashū como uma categoria distinta foi sendo abandonado.
A sociedade passou a dividir as pessoas de forma mais rígida entre: infância e vida adulta
Wakashudō começou a ser visto como:
● incompatível com valores ocidentais
● moralmente embaraçoso para o Estado moderno
A estética, os rituais e o espaço social dos wakashū praticamente desapareceram, sobrevivendo apenas em registros históricos, arte e literatura.
Longe de ser um tabu, o wakashudō foi um pilar social da classe samurai, refletindo uma visão histórica diferente — e mais complexa — sobre juventude, gênero e vínculo humano.
Por que os Wakashū ainda importam hoje?
Estudar os wakashū é essencial para compreender que:
● gênero e juventude são construções culturais
● a história japonesa é mais diversa do que estereótipos modernos sugerem
● conceitos contemporâneos não são universais
● Eles nos lembram que outras formas de existir já foram possíveis — e aceitas.
Conclusão
Os Wakashū (若衆) representam um capítulo fascinante da história japonesa, onde juventude, beleza, identidade e papel social se entrelaçavam de forma complexa e sofisticada.
Mais do que uma curiosidade histórica, eles desafiam nossas noções modernas sobre idade, gênero e corpo, oferecendo uma visão rica e profunda de um Japão que entendia a transição da vida de maneira muito diferente da atual.
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