CICATRIZ NA SEDA


Kabuki Oiran por Kazenokibou

Através dos sentimentos de um onnagata sobre uma peça encenada, caminhamos juntos diante de uma reflexão: O sol nasce para o amor e para a dor.

Por Mara Vanessa Torres & Rafaela Torres

Ichinichi isshou (Um dia, uma vida.*)
Provérbio japonês


O vilarejo de Take, um pontinho minúsculo entre uma cordilheira de montanhas, estava completamente alvoroçado naquela noite de verão. Logo mais, a comunidade receberia a apresentação teatral de uma linda e trágica história de amor.

E o melhor de tudo: a encenação ficaria a cargo de um teatro kabuki, repleto de dramatização, danças, vestuários e maquiagens exuberantes.

Haru, um jovem onnagata, interpretava o papel da gueixa Yua, conhecida por sua beleza, sedução e sinceridade. Na histórica clássica, a disputada gueixa se apaixonara perdidamente por um humilde coletor de ervas e, como foram impedidos de seguirem juntos, eles desapareceram na estrada noturna que apaga os nomes dos vivos.

Elogiado por sua atuação, Haru não parava de pensar no devastador fim dos amantes. Por questões sociais, o amor verdadeiro e puro foi esvaziado e aniquilado, tratado como coisa qualquer, sem a menor importância. Vozes externas calaram as vozes internas, afogando desejos pessoais e sentimentos genuínos de duas pessoas que se amavam. Por que? Para quê?

Quando os tambores soaram, as cortinas se abriram e o shamisen começou a tocar, era hora de Haru esquecer de si mesmo e dar vida à Yua. Sua parte favorita era o encerramento do último ato:

“Há muito e muitos anos, uma gota deslizou do céu e surpreendeu a folha da ameixeira. De um salto, a bela Yua despertou. Ela havia deixado o mundo hostil em companhia de seu grande e único amor, Koji, o coletor de ervas.

Crédito da imagem: Mikoto and Fugaku: Destined por Solar Sea

Agora, sozinha naquele lugar de grande beleza, Yua observava os raios solares lançarem sua reverência habitual diante da eternidade.

Ela estava recostada ao lado de uma ameixeira, os joelhos graciosamente dobrados para suportar o corpo leve. A frondosa árvore vibrava com o vento, que vinha continuamente acariciá-la.

Por todos os lados, a natureza soprava o sinal: é hora de despertar! As pequenas e grandes coisas ganhavam brilho e desenvoltura. Do céu ao chão, da terra ao mar, do fogo ao ar, a sensação era a mesma: renascimento.

O cálido sentimento da aurora beijava as cicatrizes do rosto e o veludo das mãos. Em um átimo, Koji surgiu ao seu lado, enlaçando-a em um abraço prolongado. Lágrimas encheram as faces dos dois amantes, agora inseparáveis por toda a eternidade.

O nascer do sol é o mesmo para a Vida e para a Morte. Até mesmo quando as lufadas outonais despontarem no horizonte, trazendo nas asas a proximidade do inverno, um novo dia surgirá. Intrépido. Acolhedor. Vivo.

Toque nas nuvens. Lembrança do céu. Coração que bate. ”

Emocionado, o público aplaudiu de pé o último ato da peça.

No coração de Haru, apenas a doce lembrança de um amor impossível, assim como o seu.

“Barqueiro, leve este bote para longe daqui”, disse a única mulher a qual o coração do jovem e consagrado ator foi capaz de amar. Suas roupas de seda, luxuosas e caras para interpretar uma personagem tão querida pelo público, agora estavam rasgadas, cheias de cicatrizes.

Yua escolheu Koji. Com tudo o que tinha a perder, ela escolheu Koji.

Mas aquela mulher o abandonara.

Depois de agradecer os elogios, o onnagata saiu pela noite escura.

No entanto, no dia seguinte, assim como o cálido sol da primavera, Haru estava de volta.
O sol nasce para todos.

O sol nasce para aqueles que estão ligados pelo amor.
O sol nasce para aqueles que precisam superar a dor.


Mara Vanessa Torres é escritora, jornalista, revisora e pesquisadora. Escreve sobre tecnologia, arte, cultura, ciência e universo asiático. Tem uma mente que acredita em enigmas e no poder da transcendência. Instagram: @maravanessatorres

Rafaela Torres é escritora, psicóloga, ilustradora e gamer. Apaixonada pela cultura asiática e por trilhas sonoras. Instagram: @rosenightshade

Créditos da imagem do topo: Kabuki Oiran por Kazenokibou

1 Comentário

  1. Maria Fátima

    Quero parabenizá-las pelo maravilhoso conto. como sempre, todos os contos de vocês são bons.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *