A cidade japonesa onde a comida é cozida no ‘vapor do inferno’


A cidade japonesa onde a comida é cozinhada no inferno

Jigoku Mushi (地獄蒸し, literalmente “vapor do inferno”) é um método de cozimento incomum encontrado em Beppu e que remonta ao Período Edo. Saiba mais.

Passear pelo bairro de Kannawa, na cidade de Beppu é uma experiência simplesmente incrível. Beppu é uma das cidades Onsen mais famosas do Japão. Os vapores fumegantes são expelidos pelos canos de drenagem e rachaduras como se o bairro fosse uma sauna gigante.

A cidade de Beppu (別府) é o lar da maior concentração de fontes termais do Japão: mais de 100.000 litros de água jorram de suas 2.300 fontes de fontes termais a cada minuto.

BeppuImagem: Depositphotos

Mas além de ser o paraíso dos banhistas, a cidade é conhecida por seus pontos geotérmicos de alta temperatura – conhecidos como jigoku ou “infernos”. Há ainda um costume culinário local chamado jigoku-mushi (地獄 蒸し), que significa literalmente “vapor do inferno”.

Jigoku Mushi é um método de cozimento incomum que remonta ao Período Edo. Os alimentos são cozidos no vapor escaldante do onsen (fonte termal). Mas prepare-se! A força do vapor que sai da panela fumegante quando você coloca a comida é surpreendentemente poderosa.

Jigoku MushiImagem: Depositphotos

Jigoku-gama (地獄釜), os “fornos do inferno” de Beppu

Espalhados por Kannawa, você encontrará grandes câmaras em forma de caixa feitas de pedra, tijolo ou concreto com fileiras de tampas de madeira no topo, projetadas para canalizar o vapor geotérmico. Estes são jigoku-gama (地獄釜), ou “fornos do inferno”.

Para usar um, você geralmente gira uma válvula para liberar jatos maciços de vapor geotérmico superquente e rico em minerais, incluindo cloreto de sódio. E você não vai esquecer o sabor único e delicioso do peixe e legumes cozidos quase instantaneamente no vapor quente.

Basta colocar seus ingredientes em uma cesta, colocar no forno, cubrir com a tampa e deixar o vapor fervente fazer sua mágica. O tempo de cozimento no vapor varia de acordo com o ingrediente, mas quando você recupera a cesta, você será recompensado com uma comida saborosa, com o vapor realçando seus sabores sutis e dando um toque de sal.

O banquete geotérmico é limitado apenas pela sua imaginação: uma cesta de camarões e mexilhões recém-pescados seria uma boa escolha, assim como vegetais da estação, arroz glutinoso enrolado em folhas de bambu ou dourada marinada em saquê.

Jigoku Mushi Imagem: photo-ac.com

Para a dona de restaurante Haruko Yasunami, que é nascida em Kannawa, o vapor do inferno fazia parte da vida cotidiana durante toda sua infância e juventude. Ela se lembra de visitar Daikoku-ya – uma das pousadas locais – toda primavera com seus vizinhos.

Ela levava takenoko (brotos de bambu) colhidos na colina perto da casa de sua família, para cozinhar nos fornos infernais da pousada. Os brotos de bambu são notoriamente complicados de preparar da maneira tradicional, exigindo várias rodadas de fervura para remover o amargor, mas segundo Haruko, cozinha-los nos vapores infernais os torna doces e macios.

Jigoku Mushi Imagem: photo-ac.com

“Para agradecê-los pela hospedagem e hospitalidade, dávamos a eles alguns brotos de bambu cozidos no vapor”, relembra Yasunami. “Mas todo mundo fazia isso, então eles eram completamente inundados com brotos de bambu. Eles ficavam tipo, ‘Por favor, não mais!’”

Origem e história do Jigoku Mushi (地獄蒸し)

Cozinhar com vapor geotérmico não é incomum em regiões vulcânicas ao redor do mundo – basta lembrarmos do pão termal da Islândia ou no cozido dos Açores – e é possível que os primeiros humanos usassem as fontes termais para cozinhar há 1,7 milhão de anos.

A cidade japonesa onde a comida é cozinhada no infernoImagem: photo-ac.com

As referências à culinária japonesa ‘Jigoku Mushi’, datam do século VIII. Mas foi no período Edo (1603-1867) que o ‘Jigoku Mushi’ passou a fazer parte do turismo de Bepuu, fazendo aumentar o fluxo de visitantes que vinham com o propósito de provar a culinária local.

O guia ilustrado ‘Tsurumi Shichitō no Ki’ do século 19 narrou como os aldeões que viviam perto das fontes cozinhavam alimentos no vapor de uma maneira “selvagem”, criando um “forno improvisado” ao redor das aberturas, colocando esteiras de palha sobre o vapor.

Jigoku Mushi Imagem: photo-ac.com

Arroz vermelho pegajoso, tubérculos e bolos de arroz eram colocados nas esteiras e depois eram cobertas com outra camada de esteiras de palha para cozinhá-los. O livro também incluía receitas de doces cozidos no vapor, como karukan (doce esponjoso feito de farinha de arroz, açúcar e inhame japonês ralado) e batata-doce Ryukyu, entre outros doces tradicionais.

Com exceção de algumas câmaras de vapor modernas do período Meiji, na maior parte, o jigoku-gama (forno de vapor infernal) permaneceu rudimentar até o início de 1900.

Jigoku MushiImagem: photo-ac.com

Em suas memórias de viagens pelo Japão entre 1901 e 1906, o fotógrafo britânico Herbert George Ponting descreve com admiração a onipresença do vapor infernal em Kannawa, onde “quase toda casa tem um conjunto de buracos do lado de fora, que são usados ​​para cozinhar”.

Até as crianças dessa época sabiam como aproveitar os vapores do inferno: os registros do período Meiji as descrevem empurrando varas de bambu no chão para criar suas próprias aberturas fumegantes, onde cozinhavam soja recém-colhida dos campos para fazer um lanche.

Jigoku Mushi Imagem: photo-ac.com

“Durante os anos do pós-guerra, as crianças também deixavam algumas batatas-doces perto do vapor subindo pelas rachaduras no chão”, diz Shinchirō Maeda, chefe de cozinha do Mushi Charō, um restaurante especializado em cozinha a vapor. “Depois de brincar, eles teriam um deleite delicioso esperando por eles.”

O turismo culinário em Beppu

No início de 1900, alguns proprietários de terras locais começaram a cobrar taxas de entrada para turistas à medida que Kannawa se tornava um importante destino turístico.

Uma safra de empresas de “aluguel de quartos” ( kashima ) surgiu no final da década de 1920 em torno de Kannawa, algumas das quais ainda existem hoje.

Graças à abundância de calor geotérmico, as despesas gerais em Beppu, bem como os preços dos quartos, eram extremamente baratos, o que permitia que os viajantes com orçamento limitado ficassem em Kannawa por semanas a um custo realmente baixo.

Assim como os albergues para mochileiros, os quartos alugados davam aos clientes acesso a uma cozinha comum com instalações compartilhadas, permitindo que os hóspedes se misturassem e fizessem amizade durante uma refeição feita no vapor infernal.

Imagem: photo-ac.com

Hoje, Jigoku Mushi é uma prática muito mais voltada para o turismo do que era durante a infância de Yasunami. A maioria dos moradores locais não come comida no vapor diariamente, a menos que tenham seus próprios fornos de vapor infernais. Claro, eles sempre podem usar os fornos dos vizinhos, mas hoje em dia eles precisam pagar uma pequena taxa ao proprietário.

“Naquela época, não tínhamos esse conceito de pagar para usar”, diz Yasunami. “Mas quando eles começaram a deixar os turistas experimentarem as comidas feitas com o vapor infernal, eles tiveram que colocar um preço no uso dos fornos infernais.”

Como parte de seus esforços para promover o turismo culinário em Beppu, a cidade abriu o Jigoku Mushi Kobo Kannawa (literalmente: “Oficina do Vapor do Inferno”), administrado por voluntários, em abril de 2010, que agora é usado por visitantes e moradores locais.

Aqui, você pode alugar um forno infernal em incrementos de 10 a 15 minutos e cestas de vapor de ingredientes comprados no centro. Você pode cozinhar praticamente qualquer coisa, e não precisa ter que ficar em uma pousada ou quarto alugado para fazer isso.

Jigoku Mushi Imagem: photo-ac.com

Os ovos “cozidos” são especialmente deliciosos: ovos cozidos no vapor são muito mais suaves, consistentemente macios, levemente salgados e fáceis de descascar.

Nos últimos anos, o pudim francês ‘crème caramel’ feito no vapor do inferno tornou-se popular entre os visitantes, principalmente as vendidas em Okamoto-ya, nas proximidades de Myōban Onsen. As guloseimas são lindamente macias, com um molho de caramelo maravilhosamente amargo, com um leve toque de enxofre. Eles não apenas atraem um público mais jovem, como também são uma opção diferente aos tradicionais manju oferecidos nas fontes termais.

Imagem: photo-ac.com

Uma das aplicações culinárias mais intrigantes do vapor infernal, no entanto, pode ser visto no restaurante Mushi Charō, que serve cozinha chinesa cozida no vapor em temperaturas mais baixas – entre 40°C a 90°C, dependendo do prato ou ingrediente usado.

A ideia é que a comida tenha um sabor melhor e retenha seus nutrientes mais facilmente quando cozida com vapor menos quente e suave, em vez de vapor ultra quente e irregular. Para isso, os vapores de aço inoxidável personalizados do Chef Maeda regulam a saturação e a temperatura do vapor geotérmico que sai das aberturas subterrâneas do restaurante.

Por que há escassez de cozinha infernal em Beppu?

Parece meio contraditório, mas na verdade existem apenas alguns restaurantes em Kannawa que servem cozinha feita no vapor infernal. A cidade de Beppu está repleta de fontes termais, então por que não há mais restaurantes explorando suas possibilidades culinárias?

Para começar, há o custo de uma fonte termal: comprar os direitos para perfurar custa vários milhões de ienes, além dos custos de construção e manutenção.

Kannawa é uma área protegida designada em Beppu, e apenas os atuais detentores de direitos podem substituir uma fonte se a deles parar de funcionar.

“Não é exatamente proibido, mas você não pode perfurar [uma nova fonte termal] se já houver uma dentro de 80 metros”, explica Yasunami.

A área de Kannawa é pequena e já há fontes de águas termais suficientes sob os regulamentos existentes, o que faz com que seja praticamente impossível obter novas fontes.

Beppu, OitaImagem: Wikimedia Commons

Queda de intensidade de calor preocupa restaurantes locais

O vapor infernal sempre pareceu um recurso infinitamente renovável, mas, recentemente, houve motivo de preocupação: o volume e a temperatura do vapor e da água nas 2.300 fontes termais de Beppu tiveram uma queda notável desde 2019. As razões exatas não são ainda claras.

No entanto, Eiichirō Tsutsumi, um oficial de turismo local que trabalha como guia culinário em Kannawa, acha que o aumento do uso de recursos geotérmicos nos últimos anos para turismo e geração de eletricidade pode ser um fator contribuinte para esta queda.

Beppu , OitaImagem: Fredrik Rubensson (flicr)

Por consequência deste evento, o restaurante ‘Jigoku Mushi Kobo Kannawa‘ foi forçado a fechar temporariamente suas portas por dois meses em 2019, pois a temperatura do vapor não estava quente o suficiente para suas operações normais. Pousadas e outras empresas se preocuparam com os possíveis efeitos em suas fontes termais.

Porém esse fato não afetou as operações do restaurante Mushi Charō. “Houve tanto pânico e preocupação em Jigoku Mushi Kobo Kannawa quando a temperatura do vapor caiu para 70°C”, diz Maeda, rindo. “Mas eu só pensei, que sorte, a comida vai ser ainda mais deliciosa!”

Imagem: photo-ac.com

“Seria interessante se a equipe pudesse se adaptar para lidar com temperaturas mais baixas do vapor [quando isso acontecer novamente], mas nem todos têm tanto conhecimento sobre vapor quanto Shinchirō Maeda”, acrescenta Tsutsumi. “Eles podem não saber quanto tempo mais para cozinhar um ovo se a temperatura do vapor cair para, digamos, 50°C.”

No entanto, isso não prejudica em nada os turistas que querem provar essa culinária incomum. Os visitantes de Beppu ainda podem provar todos os tipos de doces cozidos no vapor do inferno, cozinhar nos fornos infernais de Kannawa ou experimentar vários pratos no vapor no Mushi Charō. Não perca a oportunidade de sentir um gostinho do céu nesta cozinha literalmente do inferno.

Fonte: atlasobscura.com
Imagem do topo: photo-ac.com

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