O castigo do Bakeneko


O castigo do Bakeneko

A amizade de dois amigos desperta a inveja de um yokai. O que ele será capaz de fazer para separá-los? Acompanhe o desenrolar desta história no conto que fala sobre o poder da amizade contra a discórdia.

Por Mara Vanessa Torres e Rafaela Torres

Murakami Toshio e Sakamoto Hikaru se conheceram do modo mais improvável. Quando a Grande Fome de Tenmei afetou o Japão, provocada por irreparável prejuízo da safra e danos catastróficos à agricultura, resultado das mudanças climáticas e erupções vulcânicas, a produção e o acesso à comida foram restritos. Aos dez anos de idade, Toshio e Hikaru perderam toda a família e ficaram completamente sozinhos no mundo.

Lutando por migalhas de arroz, eles perambularam sem destino até seus caminhos se cruzarem em Kanbara, pequena cidade devastada pela erupção do Monte Asama. Pouco antes de Kanbara ser assolada pelo vulcão, os garotos dividiram os restos de comida que conseguiram encontrar. Pressentindo o pior, Hikaru avisou ao novo amigo:

— Temos que ir embora. A fúria do Monte Asama logo irá devorar este lugar.

Essa foi a primeira de muitas vezes que Toshio daria ouvidos às palavras de Hikaru. Nem mesmo a dureza dos anos e as inúmeras dificuldades encontradas durante o árduo período em que precisaram sobreviver contando apenas com a própria sorte tiveram força suficiente para separar Toshio e Hikaru. Pelo contrário: a cada novo desafio, eles se tornavam cada vez mais unidos.

* Imagem: Meeting de Tea Kitsune

Vinte anos se passaram desde a Grande Fome de Tenmei. Murakami Toshio e Sakamoto Hikaru se tornaram dois exímios pescadores. Ambos se casaram com mulheres gentis e agradáveis e ergueram suas casas no mesmo lugar, uma ao lado da outra. Durante todo esse tempo, a amizade entre os dois nunca sofreu qualquer abalo.

Até o dia em que um Bakeneko, um yokai em forma de gato, começou a observar os dois amigos e cultivar a inveja dentro do coração felino.

“Quem esses dois pensam que são?”, pensava, esfregando a língua porosa na cauda mediana. “Eles imaginam que são tão inseparáveis assim? Aposto que se acham especiais por causa dessa amizade ridícula”, imaginava, entre um miado e outro.

Cansado de apenas observar e confabular, o Bakeneko decidiu testar a força do laço que unia Toshio e Hikaru. Na noite seguinte, o youkai se transformou em uma bela mulher e ficou na espreita, aguardando um dos dois retornar para casa.

O primeiro que apareceu com o balde de madeira repleto de peixes foi Hikaru. Deixando seu esconderijo, o Bakeneko disfarçado surgiu diante do pescador:

— Sakamoto-san?

Encantado com a beleza da mulher, ele balbuciou:

— Sim, sou eu.

— Ouvi falar muito bem de seus peixes. Por isso, vim até aqui para comprá-los.

No entanto, desisti da ideia. Soube no vilarejo que os peixes de Murakami-san são melhores do que os seus porque ele é um pescador maravilhoso!

Erguendo as sobrancelhas, Hikaru respondeu:

— Sim, Toshio é um excelente pescador! Disso eu não tenho dúvidas! No entanto, eu também sou bom no que faço. Não gostaria de dar uma olhada nos meus peixes?

Fingindo timidez, a mulher-gato levou as mãos à boca e sorriu:

— Melhor não. Prefiro esperar por Murakami-san. Dizem que ele é o homem mais corajoso, inteligente e fiel dessas redondezas, além de ser o melhor pescador. Por isso, ele se casou com a mulher mais bonita e tem a casa mais bem arrumada e limpa.

Pela primeira vez na vida, o coração de Hikaru congelou. Acenando para a mulher, ele se despediu e foi para casa. Pouco tempo depois, foi a vez de Toshio ser bombardeado com as mesmas provocações do Bakeneko.

* Imagem: Bakeneko Cat de Joen Soderholm

No outro dia, o nascer do sol foi igual ao de todas as manhãs, mas foi sentido de modo completamente diferente pelos dois amigos. Hikaru e Toshio se cumprimentaram de modo frio e impessoal, e o afeto e companheirismo cultivados em duas décadas pareciam ter se dissolvido com as intrigas do Bakeneko.

Na noite seguinte, voltando para casa separados, os dois foram tentados novamente pela mulher-gato, que os comparava a todo instante, enaltecendo um e desfazendo do outro continuamente, em um círculo interminável de discórdias.

Até que, em certa manhã, Hikaru e Toshio se desentenderam por uma bobagem qualquer e decidiram se separar. Mesmo que suas casas fossem extremamente próximas, eles não se falavam mais e nem permitiram que suas mulheres trocassem mais uma palavra entre si.

Os dois não pescavam mais juntos e começaram a alimentar sentimentos negativos um contra o outro. Esse comportamento os adoecia, maltratando o interior de seus espíritos.

— Há-há-há — gargalhava o Bakeneko. — Eu sabia! Não há nada que seja indestrutível.

No entanto, um Kodama que habitava uma ameixeira ancestral ficou perplexo com a situação dos dois amigos. Ele os acompanhava no trajeto até o rio e ficava maravilhado com tanto amor e amizade. Ao tomar conhecimento do motivo que separou Hikaru e Toshio, o Kodama se indignou profundamente.

Após receber a shimenawa, a corda sagrada de proteção, o Kodama invocou todas as suas forças para desfazer a maldade instalada pelo Bakeneko e recuperar a amizade entre os pescadores.

Meses depois de se afastarem, Sakamoto-san e Murakami-san se encontraram às margens do rio em que costumavam pescar juntos. Com o rosto banhado em lágrimas, eles se abraçaram e prometeram que nunca mais iriam se afastar. Ninguém teria o poder de colocar uma serpente venenosa entre eles novamente. Esse sentimento foi conduzido pelo Kodama, que ecoou a magia do perdão e da união nos ouvidos espirituais dos amigos.

O Bakeneko tentou fugir, mas foi desmascarado. Por mais que se rebelasse ou inventasse desculpas, recebeu o castigo merecido: sua boca foi selada para sempre. Ele ficou impossibilitado de manipular ou causar intrigas.

Nunca mais seria capaz de colocar amigos contra amigos e nem irmãos contra irmãos. Sua cauda foi cortada. Ele jamais poderia se transformar em um Nekomata.

— Espero que tenha aprendido sua lição — vociferou o Kodama que habitava a ameixeira ancestral. — Não se alimenta a discórdia e a competição entre corações que se amam.

Nem a fome, nem a morte, nem a erupção de um vulcão e nem as torturas da existência colocaram uma pedra na amizade entre Hikaru e Toshio. Esse direito não lhe pertencia.

Um sentimento verdadeiro é como a neve que nunca evapora. “Forte não é a poderosa onda que tudo destrói, mas a pacífica rocha que a tudo resiste.”


Mara Vanessa Torres é escritora, jornalista, revisora e crítica cultural. Tem profunda admiração e crescente interesse pelo universo artístico e cultural asiático. @abyssal_waters

Rafaela Torres é escritora, psicóloga, ilustradora e gamer. Apaixonada pela cultura asiática. @rosenightshade

Créditos da imagem do topo: Bakeneko de Clément Galtier

1 Comentário

  1. Maria

    Que história! Me arrepiei!!! Muito boa!!!

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